O her�i depois de muitos gritos por causa do frio da �gua entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a �gua era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pez�o do Sum�, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o her�i saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, �gua lavara o pretume dele. (M�rio de Andrade, Macuna�ma 29-30)
Dentre os in�meros acontecimentos que influenciaram os rumos do Brasil, um dos principals provavelmente seja a coloniza��o que a na��o experimentou no s�culo XVI. TaI fato, cuja vig�ncia perdurou por v�rios s�culos, deixou marcas profundas na hist�ria do pa�s, j� que representou a dissemina��o de ideologias e pr�ticas violentas de controle e de organiza��o social, cujo intuito era atender as exig�ncias da metr�pole, no caso, Portugal. Em meio ao aludido processo colonizat�rio, os indiv�duos viviam situa��es limites associadas a experi�ncias autorit�rias. Assim, grupos raciais e sexuais, dentre outros, que n�o se circunscreviam na abrang�ncia de tal projeta eram excluidos do centro de interesse do poder. A literatura brasileira, ao longo do seu processo de forma��o, n�o perdeu de vista as referidas circunst�ncias hist�ricas. V�rios escritores voltaram a sua aten��o para particularidades que mantivessem correspond�ncia com situa��es dessa natureza. Ali�s, talvez um dos principals livras que ilustra quest�es dessa amplitude seja O seminarista, de Bernardo Guimar�es1, publicado em 1872.
O mencionado romance � composte de vinte e quatre capitules relativamente curtos e escrito numa linguagem bastante acessivel, fluente e natural. O seu enredo radica em torno dos seguintes acontecimentos. No interior de Minas Gerais, Eug�nio-filho do capit�o Francisco Antunes, fazendeiro de medianas posses-passa a inf�ncia ao lado de Margarida-filha de D. Umbelina, uma simples agregada da fazenda. Dessa conviv�ncia nasce o amor. Para evitar que esse caso prossiga, os pais do menino decidem intern�-lo em um semin�rio, obrigando-o a seguir a carreira eclesi�stica. O tempo passa, mas Eug�nio n�o esquece a mo�a. Com a ajuda dos padres, seus pais inventam a not�cia do casamento de Margarida, o que desilude Eug�nio e o faz decidir-se pela vida de padre. Certo dia, ao retornar � sua vila natal, ele � chamado para socorrer uma mo�a doente. Era Margarida. Ela lhe conta toda a verdade: tinha sido expulsa da fazenda com a m�e, agora morta; passava necessidades e n�o havia se casado com ningu�m, porque ainda o amava. A paix�o renasce e os dois se entregam ao amor. Atormentado pelo remorso, Eug�nio se prepara para rezar a sua primeira missa, quando uma pobre velha o chama para encomendar um cad�ver que acabara de chegar � igreja. Era o corpo de Margarida. Nesse momenta, Eug�nio n�o resiste ao choque e, na hora da missa, enlouquece.
Essas observa��es prestam-se para demonstrar que, n'O seminarista, h� um embate entre um grupo dominante e uma classe subalterna, mostrando a superioridade daquele em rela��o a essa. Como resultado desse choque, se deveria presumir um discurso marcado por diferen�as de registre entre uma classe e outra assim como uma estrutura fragmentada, com fissuras internas. Isso porque, afinal de contas, a hist�ria do Brasil n�o se agrega em torno de uma unidade totalizadora, linear e dotada de um processo progressivo e evolutivo tal qual proclama a hist�ria oficial. No entanto, o que se registra no livro de Bernardo Guimar�es � a presen�a de um narrador onisciente neutro que elege contar uma situa��o de maneira linear (n�o fragmentada) e homog�nea. Logo, o narrador compactua com o modelo europeu-modelo esse que vai ao encontro de uma hist�ria unit�ria de representa��o, constru�da por grupos e classes sociais dominantes. Assim, o romantismo brasileiro, primeira escola liter�ria da chamada era nacional, cuja vig�ncia se deu entre 1836 e 1881, parece estar ainda preso ao padr�o europeu, nesse caso, n�o propriamente pela tem�tica, mas pela forma que narra os epis�dios. A literatura rom�ntica, embora quisesse ser independente do modelo europeu, n�o atingiu tal objetivo satisfatoriamente. O modelo brasileiro, com isso, carece de um padr�o original que se distinga dos demais. Ou seja, o modelo europeu prevalece, decidindo o padr�o art�stico.
Apesar do valor da obra, e embora mais de um s�culo tenha decorrido em ocasi�o de sua primeira edi��o, poucos estudos foram encontrados a respeito de O seminarista. Alfredo Bosi (1994), em seu manual de literatura brasileira, elogia o livro e o situa na linha do romance passional, comparando-o, inclusive, com o esquema final de Eurico, o presb�tero (1844), de Alexandre Herculano. Segundo o cr�tico, a loucura do padre Eug�nio, ap�s a viola��o de suas promessas religiosas, lembra a morte do presb�tero e a dem�ncia de Hermengarda que fecha o romance portugu�s. Nesse sentido, portanto, Bernardo acentua tra�os da sensibilidade tolhida, que o idealista Herculano sublima, e antecipa o romance de tese de Ingl�s de Souza, O mission�rio (1888). Outros estudiosos, quando na refer�ncia ao texto de Guimar�es, limitam-se a alguns coment�rios sobre o seu enredo, e o autor tem o seu lugar no c�none liter�rio em virtude de ter expressado as tend�ncias sertanistas rom�nticas como nenhum outro escritor do per�ode.
A despeito de suas particularidades, O seminarista apresenta alguns tra�os em comum com outres dois romances: O crime do padre Amaro, de E�a de Queiroz e Dom Casmurro, de Machado de Assis. O primeiro foi publicado em 1875 e focaliza criticamente a igreja e o celibato clerical atrav�s da figura de Amaro, sacerdote jovem e pouco seguro de sua voca��o. O autor faz dessas institui��es seu ponto de partida para uma an�lise rigorosa da hipocrisia e do moralismo da sociedade portuguesa de seu tempo. O segundo foi editado em 1899 e, nele, observa-se o olhar machista que Bentinho, o protagonista, projeta sobre a sua companheira Capitu. Ele abandona a carreira eclesi�stica e opta pelo casamento. Contudo, surge a suspeita de adult�rio por parte da esposa, levando-a, junto com o filho Ezequiel, � morte. O seminarista, diferentemente dessas duas obras, surge na vig�ncia do per�odo rom�ntico brasileiro. Por isso mesmo, a paisagem campestre e buc�lica s�o elementos que perpassam o texto com o intuito de valorizar a cor local. O crime do padre Amaro e Dom Casmurro n�o apresentam tal preocupa��o, todavia projetam, igualmente, uma cr�tica � sociedade de sua �poca. Eles se inserem dentro da est�tica realista, procurando comunicar o seu sistema e seus valores atrav�s de uma voz narrativa que n�o � neutra, mas muitas vezes ir�nica e sarc�stica.
De qualquer modo, o objetivo desse estudo consiste em analisar a obra de Bernardo Guimar�es enquanto uma representa��o da ideologia colonialista da �poca. O exame, ainda, pretende demonstrar como elementos vinculados a tal ideologia perpassam o livro em aprecia��o, infiuenciando a conduta e o comportamento dos indiv�duos sociais. A avalia��o n�o � exaustiva, ou seja, n�o pretende verificar todas as ocorr�ncias que se ligam ao referido topico: antes, procura centrarse na quest�o do patriarcalismo e nas estrat�gias a que o grupo dominante aderiu para sustentar o seu poder. A abordagem suscitada pelo texto do escritor rom�ntico � importante, porque motiva uma reflex�o sobre as rela��es sociais e as pr�ticas de poder que cerceiam a sociedade brasileira nos dias atuais. Ou seja, o livro assenta-se nas condi��es s�cio-hist�ricas vigentes no passado, mas que se aplicam ao momento presente. Seja como for, pelos levantamentos efetuados, n�o se encontrou qualquer evid�ncia de que esse romance j� tenha sido analisado atrav�s da metodologia aqui empregada, e isso justificaria, pois, a presente aprecia��o cr�tica.
Os detalhes que constituem o enredo do romance apresentam alguns pressupostos que se filiam � ideologia do colonialismo. Esse �ltimo gira em torno de uma premissa na qual um poderoso centro cria a sua periferia. Em O seminarista, a fam�lia Antunes serve como motivo para alegorizar uma condi��o que se associa ao dominador. Em contrapartida, Margarida e sua m�e encerram a condi��o de subalternas, ou seja, referem-se a pessoas que s�o o objeto de hegemonia das classes dominantes. Afora isso, a coloniza��o e o discurso colonialista valem-se do patriarcalismo e da exclusividade sexista. Nessa obra, � a fam�lia de Eug�nio, atrav�s de uma pr�tica repressora e autorit�ria, quem decide o arranjo social a fim de atender a seus interesses. Nesse sentido, � curioso observar que � o elemento masculine que predomina na fam�lia Antunes (e essa � apresentada com um sobrenome que a distingue em rela��o as demais), ao passo que � a figura feminina que constitui o n�cleo familiar no segundo caso (e essa n�o � marcada por um sobrenome que Ihe confira algum prest�gio social).
No Brasil, as pr�ticas bem como as difus�es da ideologia colonialista tiveram in�cio no s�culo XVI com a chegada dos colonizadores europeus. Tal fato contribuiu para que as metas imperialistas se propagassem e ganhassem proje��o de maneira que viessem a perdurar ao longo dos s�culos subseq�entes. A l�gica do colonialismo-pautada, sobretudo, na violenta imposi��o de uma cultura sobre a outra-consistia, pois, na tentativa de manuten��o da ordem do poder. Dentro do �mbito familiar, reflexos dessa ideologia eram mantidos, j� que passavam de pai para filho. Em outros termos, regras de submiss�o eram transferidas de gera��o a gera��o. Em O seminarista, certas situa��es ilustram essa ocorr�ncia. No primeiro cap�tulo do livro, em meio a uma paisagem campestre e amena que lembra um ambiente buc�lico, Eug�nio conta a Margarida a decis�o de seus pais em rela��o ao seu futuro: "-Vou para o estudo, Margarida; papai mais mam�e querem que eu v� estudar para padre" (12).
Conv�m destacar dessa passagem a submiss�o de Eug�nio perante a atitude de seus pais. O filho, sem liberdade para optar entre esse ou aquele destino, � orientado a seguir uma voca��o que, al�m de n�o ser de seu interesse, segundo as leis eclesi�sticas, n�o autoriza o matrim�nio. Aqui, o que estaria em conson�ncia com a proposta colonialista � a manuten��o da ordem e as restri��es impostas pelo discurso dominante que n�o permite nenhuma manifesta��o contr�ria aos crit�rios can�nicos ou pol�ticos. N�o obstante tais particularidades, observa-se, nesse esquema, uma contradi��o ideol�gica projetada pela fam�lia Antunes. Essa precisa dar continuidade ao seu nome-o nome do pai, do elemento masculino. Entretanto, ela prefere romper com tal norma a ver sua fam�lia contaminada por um elemento proveniente de uma classe social inferior. A situa��o ilustrada demonstra, pois, que a classe subalterna tem uma participa��o bastante restrita dentro do projeta de coloniza��o. Qualquer tentativa de assimila��o de um modelo por outro implica a exclus�o do mais fraco.
A imposi��o de certas ideologias e, com isso, a moldagem do sujeito, na maioria dos casos, inicia no seio familiar quando se � crian�a, e ganha uma proje��o as vezes catastr�fica na vida adulta. Nessa fase, observa-se que muitos valores que cercam o indiv�duo n�o s�o pertinentes ou condizentes com seus reais anseios. Nesse mesmo cap�tulo, Eug�nie exp�e a Margarida certas atitudes de sua m�e, as quais n�o s�o compat�veis com as suas aspira��es: "-Mam�e costuma dizer que eu j� estou ficando grande, e que daqui a um ano bem posso me confessar, e para isso anda me ensinando doutrinas; mas eu n�o tenho �nimo de me confessar a padre nenhum..." (12).
Nesse caso, a fala da m�e de Eug�nie � carregada ideologicamente. A express�o "costuma dizer" pressup�e uma a��o repetida in�meras vezes cujo intuito � fazer com que o sujeito internalize determinada concep��o do mundo. Isso significa, ent�o, que a elocu��o proferida pela senhora Antunes, dentro daquele universe cultural, � menos uma elocu��o constativa (verdadeira ou falsa, de acordo com a situa��o) do que uma longa s�rie de performativas que criam o sujeito conforme certes padr�es convencionais da �poca. Com isso, chama-se a aten��o para o fato de a �nfase recair na maneira como a for�a performativa da linguagem vem da repeti��o de normas anteriores. Portante, os dizeres da m�e inculcam no filho um certo modo de agir e de se construir. O discurso do colonizador n�o � diferente: ele inferioriza seus subalternes por meio de um discurso que, se n�o exclui o outro (conforme a terminologia proposta por Lacan), pelo menos convence as outras classes de que os interesses dela (da classe dominante) s�o interesses comuns e, conseq�entemente, aceitos por todas as demais classes.2 Nesse particular, tal discurso faz com que Margarida e sua m�e sejam exclu�das de um centre hegem�nico.
Seguindo os aludidos pressupostos, o discurso, ao ser internalizado, organiza um determinado ponto de vista do mundo, colocando os indiv�duos como um elo (inconsciente) na cadeia de poder. A linguagem estaria, pois, no centre do poder social e das pr�ticas sociais. Ali�s, o discurso � tanto mais persuasivo quanta melhor estiver alicer�ado sobre uma institui��o tamb�m influente. N'A carta, de Pero Vaz de Caminha, primeiro documenta que registra as a��s dos colonizadores europeus em solo brasileiro, o discurso religiose � uma das estrat�gias de que se valem os portugueses para difundirem a sua ideologia. Nela, ainda, abundam epis�dios de vis�o pan�tica do colonizador portugu�s, de seu fitar objetificado, de sua superioridade cultural diante da presum�vel barb�rie dos natives. Em O seminarista, esses mesmos dogmas religiosos s�o utilizados como estrat�gia para afastar Margarida de Eug�nio. Nesse sentido, h� um quadro fundamental que perpassa toda a narrativa. Trata-se do instante em que Margarida, com seus dois anos de idade, separa-se de seu camarada de inf�ncia e, assentada na relva junto a uma fonte, encontra-se a brincar com uma formid�vel e truculenta jararaca:
A cobra enrolava-se em an�is em volta da crian�a, lambia-lhe os p�s e as m�os com a rubra e farpada l�ngua, e dava-lhe beijos nas faces. A menina a afagava sorrindo, e dava-lhe pequenas pancadas com um pauzinho que tinha na m�o, sem que o hediondo animal se irritasse e lhe fizesse a m�nima ofensa. (15)
O r�ptil, a menina, o menino e o meio campestre s�o imediatamente associados pelos pais das crian�as ao mito b�blico da serpente que, no �den, perturba Ad�o e Eva e, em virtude disso, rompe com a harmonia estabelecida por Deus. Nessa ocasi�o, diz a senhora Antunes � D. Umbelina: "A comadre deve lembrar-se que foi uma serpente, que tentou Eva", e acrescenta: "Tamb�m a serpente do para�so n�o mordeu Eva; arrastou-se a seus p�s e afastou-a para melhor engan�-la" (16).
Existe, aqui, um v�nculo entre ideologia religiosa e comportamento social. Margarida poderia ter sido fatalmente picada pela cobra, mas, por sorte, saiu ilesa. O modo como os fatos se sucederam levou a senhora Antunes a projetar uma intui��o pessimista acerca da menina tendo como base a narrativa b�blica que conta o fini tr�gico de Ad�o e Eva no para�so. A forma como a m�e de Eug�nio amarrou o mito presente no livro sagrado e o acontecimento assustador h� pouco resolvido chama a aten��o para a naturaliza��o das condutas religiosas crist�s, as quais induzem a sociedade a definir o perfil das pessoas. Em outros termes: as ideologias sustentadoras do patriarcado ganhariam dimens�o e consist�ncia, pois estariam difundidas nos mandamentos religiosos inculcados nos indiv�duos. Assim, o controle da ordem social era assegurado pelo pr�prio n�cleo familiar que, respaldado na e pela igreja, julgaria as posturas dos sujeitos sociais como corretas ou incorretas, podendo, po�s, inclu�-los ou exclu�-los do sistema. Os pressupostos colonialistas, seguindo esta linha de pensamento, valer-se-iam de t�ticas cujo intuito � o controle de grupos sociais para, assim, difundir suas ideologias de controle, domina��o e exclus�o. A igreja, nesse caso, desempenharia, ent�o, uma fun��o essencial.
Outro ponto de interesse tange � educa��o de Margarida. Quando ela tinha entre nove e dez anos, j� havia sido introduzida �s tarefas dom�sticas: "A menina j� podia ajudar a sua m�e; sabia coser, bordar, e era muito diligente em toda a esp�cie de servi�e caseiro compat�vel com a sua idade" (18-19). O trecho destaca que cabe � m�e preparar a filha a fini de que ela tenha condi��es de cumprir com certo papel social. Nesse sentido, merecem destaque duas observa��es. A primeira diz respeito � manuten��o desses pap�is sociais na familia: a m�e instrui a filha com seus ensinamentos e habilidades para que, mais adiante, seja uma boa esposa, uma boa m�e e, afora isso, para que satisfa�a �s necessidades do marido. A segunda � relativa � despreocupa��o de D. Umbelina para com a educa��o formai da menina. Margarida n�o freq�enta a escola, pois o papel que a mulher tem de satisfazer n�o exige que ela saiba ler ou escrever. A ela caberia o papel de apoiar o homem na sustenta��o das estruturas da sociedade.
Cabe destacar que existe uma estreita rela��o entre os estudos colonialistas e o feminismo. Haveria uma analogia entre patriarcalismo/feminismo e metr�pole/col�nia ou colonizador/colonizado. Na hist�ria do Brasil, a mulher sempre foi relegada ao service do homem, ao sil�ncio, � dupla escravid�o, � prostitui��o ou a objeto sexual. No caso de O seminarista, Margarida � orientada a uma posi��o de subordina��o e, por isso mesmo, de inferioridade. A sua tend�ncia n�o � a de destruir a supremacia masculina; ao contr�rio, � a de se aliar ao sistema r�gido imposto pelo homem-simbolo da for�a, do poder e da domina��o. Assim, haveria v�nculos entre os conjuntos homem/mulher e colonizador/colonizado. Entre esses dois conjuntos, estabeleceu-se um sistema de diferen�a hier�rquica fadada a jamais admitir um equil�brio no relacionamento econ�mico, social e cultural. Nesse sentido, a cr�tica feminista, enquanto uma vertente da cr�tica liter�ria, teria assumido o papel de questionadora da pr�tica acad�mica patriarcal e, conseq�entemente, colonialista.
Da mesma forma que Margarida, Eug�nio tamb�m deve cumprir com um determinado papel social pautado na vontade de seus pais: "os pais entenderam que o menino tinha nascido para padre, e que n�o deviam desprezar t�o bela voca��o. Assentaram, pois, de mand�-lo estudar e destin�-lo ao estado clerical" (20). Novamente, nesse caso, � o discurso do mais forte que prepondera sobre os demais (o outro, na terminologia lacaniana). A l�gica do colonialismo � uma l�gica de perpetua��o de certos pontos de vista e, principalmente, de certas ideologias. Por isso mesmo, Eug�nio deve ser fiel ao que lhe � imposto (embora contra a sua vontade), sem poder questionar ou ser resistente a tais concep��es. Isso significa que as premissas do colonizador-alegorizadas, aqui, pelas atitudes dos pais do menino-s�o incontest�veis e, portanto, autorit�rias.
No particular ao romance em aprecia��o, o problema vai um pouco al�m. Eug�nio � v�tima da vontade alheia. Em certa altura do livro, ele confessa � mo�a a impossibilidade de rea��o perante as decis�es de seu pai: "-Mas eu n�o sou senhor de mim, Margarida; hei de fazer o que meu pai mandar" (45). Nesse momento, o rapaz encontra-se dividido entre as exig�ncias da fam�lia e o amor � Margarida. Depois de passar doze anos no semin�rio, o estudante volta � casa de seus pais e, ao reencontrar a sua companheira, exp�e-lhe toda a ang�stia de estar longe dela e da fam�lia: "Era a saudade imensa, que tinha do lar paterno e especialmente de Margarida, saudade que nem o tempo, nem os seus novos h�bitos e ocupa��es puderam jamais arrancar-lhe do cora��o" (23).
A prop�sito, o per�odo em que Eug�nio freq�entou o semin�rio foi muito marcante para a sua forma��o. O rigor com que os padres conduziam a educa��o religiosa, ao mesmo tempo em que introduzia nos indiv�duos uma ideologia subversiva que atendia ao patriarcado, moldava o sujeito com uma �ndole violenta. O cap�tulo VI � ilustrativo a esse respeito. Eug�nio-angustiado pela perda do conv�vio com sua fam�lia e, principalmente, com sua amada-busca externar seus anseios escrevendo poemas inspirados em Margarida. Ao serem descobertos, tais poemas s�o entregues ao padre-mestre diretor do estabelecimento religioso. A sua rea��o foi de revolta:
O diretor, cheio de assombro e altamente escandalizado, resolveu chamar � sua presen�a e interrogar com todo o rigor o autor daquelas libertinagens, disposto a castig�-lo severamente.
-Que hip�crita!-exclamava o padre, cheio de santa indigna��o. -Em t�o tenra idade e j� com o cora��o t�o corrompido!... ah! velhaquete!... e andava-me aqui com carinha de santo!... que castigo merece um hip�crita tal!... (30)
O posicionamento do padre em punir o seminarista pelo simples fato de amar uma pessoa �, ao mesmo tempo, autorit�rio e paradoxal.3 Isso porque os preceitos religiosos crist�os, segundo a b�blia sagrada, n�o condenam o amor entre dois ou mais seres. Nesse contexto, no entanto, as condi��es em que ocorre tal relacionamento contribuem para que o amor se converta num sentimento pecaminoso e, portante, conden�vel, pois vai de encontre aos padr�es e � moral religiosa da �poca. A autoridade eclesi�stica, nesse particular, deveria estimular o rapaz a abandonar os estudos e a seguir a sua vida ao lado de Margarida se assim fosse a sua espont�nea vontade. A atitude do padre, por�m, � de repress�o:
-Com efeito, senhor estudante!-prosseguiu o padre com a voz grave e solene-quando n�s todos aqui o t�nhamos no conceito do melhor e mais bem-comportado dos estudantes; quando eu o apontava como um exemple a seus companheiros, cai-lhe enfim a m�scara, e o senhor mostra que n�o � sen�o o tipo da mais rematada hipocrisia!... Que quer dizer esta carta?... estes versinhos? que abomina��o � esta? explique-me isto, senhor Eug�nio. Ent�o toda essa sua devo��o, que tanto nos edificava, essa carinha de santo, esses seus modos humildes n�o eram mais do que uma m�scara para nos enganar, e que encobria um libertino? � assim que corresponde aos louv�veis desejos de seu pai, que tanta vontade tem de v�-lo padre? diga-me, n�o se peja dentro da consci�ncia do triste papel que est� fazendo?... (31)
Chama a aten��o nesses dois �ltimos fragmentos extra�dos de O seminarista o discurso de que o padre-mestre se utiliza para produzir um efeito sobre o seu interlocutor, no case, Eug�nio. Tal discurso-pronunciado per uma autoridade e respaldado pelos dogmas religiosos crist�os-ganha consist�ncia, passando a se tornar ideol�gico e, portanto, inquestion�vel. O discurso do dominador-que, ali�s, nesse caso, pode ser identificado com o discurso do colonizador-est� assentado na busca de consecu��o de pr�ticas que se voltam para seu pr�prio interesse, quai seja, o de construir um sujeito que se enquadre dentro de um jogo de regras especificas. Nesse sentido, a subjetividade seria constru�da atrav�s do discurso e, assim, se poderia dizer que o mundo colonizado n�o se apresentaria como uma realidade aut�ntica, mas enquanto uma constru��o ideol�gica, em que o discurso do mais forte predomina sobre os demais.
Afora esses detalhes, outras express�es do colonialismo podem ser verificadas em tais passagens. O relacionamento entre os personagens aponta nessa dire��o. Os argumentos do padre incutem em Eug�nio v�rias impress�es: dor, terror e, sobretudo, vergonha. Esse �ltimo sentimento faz com que o seminarista sinta-se ressentido naquele contexto, levando-o a uma sensa��o de destrui��o. Sem condi��es psicol�gicas de reagir contra as circunst�ncias externas, ele acaba seguindo os conselhos de seu superior, por press�o e por achar que alcancaria a felicidade esquecendo-se de Margarida. Ou seja, a opress�o, o sil�ncio e a coibi��o que o estudante experimenta decorrem de uma ideologia de sujeito e objeto mantida pelo diretor do estabelecimento religioso. Sujeito (agente) e objeto (o outra, subalterno) pertencem a uma hierarquia em que o oprimido (o colonizado) � fixado pela superioridade moral do dominador (colonizador).
Todas essas situa��es a que Eug�nio � exposto fazem com que ele se agregue a pr�ticas que violentam o seu pr�prio corpo com o intuito de satisfazer algo contr�rio � sua vontade:
Para esquecer Margarida era precise quebrantar o corpo a ponto de o reduzir quase a cad�ver, embrutecer o esp�rito e mirrar o cora��o e Eug�nio n�o trepidou diante de t�o horr�vel alternativa. � for�a de trabalhos e ins�nias, de ora��es, jejuns e mortifica��es continuadas, caiu em tal estado de prostra��o, de atonia f�sica e moral, que embotando-se-lhe de todo a sensibilidade e quase extinto o lume da intelig�ncia, o rapaz ficou como que reduzido a um aut�mate. (36)
Esse trecho do romance enfatiza o grau de viol�ncia abstra�do por Eug�nio e infligido contra o seu pr�prio corpo. Em virtude das impl�citas exig�ncies sociais, por sua vez manipuladas por uma ordem autorit�ria sustentada pelo patriarcalismo, o protagonista se agride. Como se pode constatar, a sociedade controla o sujeito e tem o poder de manipular as suas id�ias a ponto de descentr�-lo e, como a pr�pria passagem sugere, reduzi-lo "a um aut�mato", ou seja, uma pessoa incapaz de agir conscientemente e independentemente. A ret�rica empregada pelo padre-mestre leva, assim, o protagonista a uma "carnificina f�sica", para usar a express�o de Said (1995). Ent�o, n'O seminarista, Eug�nio se insere (ou � inserido) de maneira inconsciente na ideologia clerical que, a rigor, dialoga com o sistema patriarcal e colonial. Em outros termos: a sociedade, imbu�da por uma ideologia patriarcal e colonial, dialeticamente, influencia e � influenciada pela igreja que contribui na determina��o do perfil dos indiv�duos, e esses aceitam e aderem �s regras ditadas sem qualquer questionamento.
Seja como for, pode-se falar, aqui, da castra��o de Eug�nio. O discurso de seus pais bem como o dos padres o alienam, abolem a sua pr�pria linguagem de liberdade e produzem um outro conhecimento de suas normas. Tais constata��es t�m uma proje��o que se filia ao discurso colonial. Esse pretende-se inalter�vel e, por isso mesmo, vale-se de estrat�gias (tal como o discurso crist�o) para garantir o controle social e a supremacia frente a uma na��o. Como resultado disso, os sujeitos (e, nesse caso, pode-se pensar tanto em Eug�nio quanta em Margarida e D. Umbelina) s�o colocados de maneira desproporcional em oposi��o ou domina��o atrav�s do descentramento simb�lico de m�ltiplas rela��es de poder que representam o papel de apoio, bem como o de alvo ou advers�rio.
Ali�s, Eug�nio, Margarida e D. Umbelina s�o inseridos num mesmo piano social, porque, na tradicional sociedade patriarcal brasileira, crian�as e mulheres n�o t�m qualquer direito ou privil�gio. N�o s� isso: nesse caso, elas constituem uma amea�a a uma ordem hegem�nica estabelecida. O relacionamento amoroso entre a menina e o rapaz passa, pois, a ser visto como uma transgress�o de determinados ideais impostos socialmente, ideologicamente e culturalmente. Assim, dentro de uma concep��o rom�ntica do amor, na quai as pessoas s�o atraidas por algum principio de afinidade, a afinidade entre os dois � a de que ambos s�o v�timas do patriarcalismo.
Al�m disso, a atitude dos pais de Eug�nio em afastar os dois enamorados se refor�a conquanto se atentar para a situa��o econ�mica de Margarida. Conforme se verificou, ela � subordinada aos Antunes e, ademais, n�o det�m qualquer poder aquisitivo ou posses. Nessa situa��o, o casamento entre os jovens deixa de ser um ideal do grupo dominante, pois n�o constitui num neg�cio rent�vel para eles. Essas observa��es s�o importantes uma vez que neg�cio e matrim�nio s�o, no �mbito das rela��es patriarcais, dois lados da mesma moeda. O casamento somente � aceito quando as fam�lias de ambos os lados constituem uma alian�a financeira cujo intuito � assegurar a perspective da unidade familiar, marcada pela estabilidade e regulariza��o de vida que o matrim�nio exige possuir. Logo, n�o � por acaso que, em certa altura do livro, a m�e de Eug�nio chama a aten��o para que ele mude as suas atitudes: "Se teimas em continuar a n�o sair l� da casa da comadre Umbelina, falo com teu pai para te mandar j� para o semin�rio, mesmo antes de se acabarem as f�rias, e n�o voltas de l� sen�o depois de ordenado" (49). Portanto, a preocupa��o, nesse particular, n�o se volta para os interesses do rapaz; ao contr�rio, fixa-se nos pr�prios anseios dos pais, os quais n�o medem esfor�os para atingir as suas metas. Assim, pode-se dizer que Eug�nio e Margarida n�o s�o apresentados enquanto sujeitos sociais dentro de uma escala de valores.
A constante perturba��o da senhora Antunes por ver o futuro do filho amea�ado faz com que ela rememore o epis�dio do envolvimento de Margarida com a serpente anos atr�s:
A m�e de Eug�nio era fan�tica e supersticiosa. A aventura da cobra enleando-se no corpo de Margarida, que nunca lhe sa�a da lembran�a, lhe incomodara sempre o esp�rito. Agora refletindo sobre a cega e ardente afei��o que a menina ia inspirando cada vez mais a seu filho, entrou a nutrir as mais tristes e sombrias apreens�es, e acabou por convencer-se que n�o era sen�o o dem�nio, que em figura de cobra viera lan�ar no seio da menina o germe da tenta��o para seduzir seu filho, desvi�-lo de sua santa voca��o, e arrast�-lo ao caminho da perdi��o. Da� aquela severidade e rigor que lhe n�o eram usuais, e que s� por um t�o poderoso motivo podia ser impelida. (50-51)
D. Antunes � uma pessoa fervorosamente adepta � religi�o e, presumivelmente, bastante influenciada pelas ideologias patriarcais e coloniais. Segundo o seu conhecimento pr�vio, o mito da serpente, tal como se registra na b�blia, narra um desfecho infeliz; portanto, haveria de ter algo de perturbador na rela��o de Margarida com Eug�nio. O aludido acontecimento que marcou a m�e do protagonista vem � tona e intensifica, ao longo do tempo, a certeza de que a menina � um ser transgressor da ordem. Como forma de garantir o bem do filho e a estabilidade da fam�lia, os Antunes decidem afastar Umbelina e Margarida de suas terras: "Um belo dia pois Umbelina e sua filha tiveram de arrumar a sua trouxa, e de dizer eterno adeus � sua linda casinha, ao risonho e pitoresco vale, ao c�rrego e �s paineiras que por tantos anos tinham sido o abrigo e a companhia de sua feliz e pacifica exist�ncia" (71).
� evidente, nessas cenas, o jogo de poder que se estabelece entre um grupo e outro. Pelo que tudo indica, os Antunes fazem parte de um c�rculo de fam�lias tradicionais, que det�m posses e status social. D. Umbelina e Margarida, ao contr�rio, s�o mais simples, n�o possuem bens e, o que � mais importante, s�o subordinadas aos Antunes, encerrando a condi��o de subalternas de um sistema dirigido por um grupo dominante. Como decorr�ncia disso, n�o lhes � dado o direito � voz; muito menos ao subalterno feminino, tornado como sendo duplamente submisso: por ser subalterno em rela��o � metr�pole e por ser subalterno nas rela��es de g�nero. Assim, tanto Umbelina quanto Margarida formam uma classe sempre submetida � hegemonia da classe dominante. Qualquer comportamento subversivo por parte do grupo subordinado confere a essa classe dominante o direito de reagir autoritariamente. Nesse sentido, Margarida converteu-se num mal que deve ser aniquilado, e os Antunes fazem isso de forma violenta. O discurso religioso crist�o foi o meio encima do qual eles se calcaram para justificar tal atitude e comportamento, constituindo, assim, uma posi��o como uma convic��o de verdade.
Todo mart�rio que Eug�nio vem experimentando desde a sua inf�ncia at� a sua juventude contribui para que ele se sinta desnorteado:
Via diante de si a incerteza do future, o inabal�vel emperramento de seus pais, que todo o transe o queriam fazer padre, a sorte prec�ria de Margarida, malvista e repudiada por eles, pobre e fr�gil criatura exposta a todos os embates de um destino cruel e a todas as sedu��es e azares de um mundo corrupto e libertino. [...]
Agora que seus pais com tanta desumanidade a repudiavam, e que n�o lhe restava sen�o sua velha e m�sera m�e, ele que era seu �nico amparo sobre a terra devia viver s� por ela e para ela. (75)
Eug�nio tem consci�ncia de que teria uma vida atormentada e melanc�lica. De um lado, estava o sofrimento de Margarida que o contagiava; de outro, a impossibilidade de ajud�-la em virtude das repress�es dos pais. Al�m disso, soma-se o fato de o seminarista desprezar a voca��o que lhe foi estipulada. Enfim, no caso de O seminarista, existe um campo ideol�gico no qual o indiv�duo deve se inserir. Ali�s, o homem � um animal ideol�gico por natureza. O v�nculo sujeito-ideologia � algo intr�nseco e indissoci�vel, sendo que a categoria sujeito � constitutiva de qualquer ideologia na medida em que toda ideologia tem a fun��o de construir indiv�duos concretos como sujeitos. No romance em aprecia��o, a igreja, enquanto aparelho do Estado, segundo a terminologia adotada por Althusser (1985), funciona predominantemente pela e atrav�s da ideologia (ideologia essa trazida pelos colonizadores do al�m-mar), resguardando uma for�a repressora, moderada ou mascarada. Qualquer tentativa de resist�ncia a essa ordem geraria tens�es. Portanto, o conflito que se instaura entre o senhor e a senhora Antunes, Eug�nio, Margarida e Umbelina decorre, por um lado, do esfor�o de preserver e, por outro, de esfacelar tal ordem. Eug�nio encontra-se no centre dessas diverg�ncias e, por isso mesmo, sente-se descentrado.
Outro fato que contribui para que Eug�nio caia no remorso diz respeito � falsa not�cia que seus pais inventam acerca do casamento de Margarida: "Alguns dias cru�is e noites de agonia passou Eug�nio nesta tempestuosa agita��o, que quase tocava ao del�rio" (83). No entanto, a revela��o dessa mentira pela pr�pria Margarida faz com que o rapaz nutra um sentimento de revolta para com os pais e mesmo para com a ordem religiosa:
Para que semelhante embuste, meu Deus!-murmurava consigo.-que id�ia infernal de sacrificar o destine de duas pessoas por meio de uma mentira!... Se n�o fosse tal mentira, se me contasse-como era verdade-que Margarida fiel ao seu amor se finava de saudades por mim, decerto eu nunca teria tornado esta veste sagrada, que hoje me queima as carnes como a t�nica de Nesso. (95)
A sucess�o de fatos degradantes que marcam a trajet�ria de vida de Eug�nio ganha relevo e, como resultado disso, descentra-o. A sua ess�ncia melanc�lica vincula-se � impossibilidade de rea��o e subvers�o das condi��es que o definem: "j� agora que hei de eu fazer... ca� at� o fundo do abismo, donde nunca mais poderei levantar-me. Ah, celibato!... terr�vel celibato!,.. ningu�m espere afrontar impunemente as leis da natureza!" (101). Nessa fala de Eug�nio, observa-se que as ideologias nele inculcadas tornam-no submisso. Entretanto, ele tenta levar adiante a sua carreira, embora reconhe�a que � algu�m frustrado. EIe resiste aos embates da vida porque sabe que Margarida est� por perto. Contudo, a morte de sua amada culmina no desespero e na revolta contra tudo e todos. O trecho a seguir revela o instante em que Eug�nio se depara com o corpo de Margarida, na igreja, pouco antes de pregar a sua primeira missa:
Num pobre caix�o sem tampo, pobremente amortalhado, inteiri�ava-se um corpo de mulher. (...) Um len�o branco cobria o rosto da finada, e sobre o seu peito via-se uma capela de alvas flores, simbolo da virgindade. [...]
O sacrist�o para se dar come�o � encomenda��o, tirou o len�o ao rosto da finada; o padre soltou um grito rouco e sufocado, cambaleou, e teria baqueado em terra, se n�o deparasse o bra�o que o sacrist�o lhe apresentava para escorar-se. A finada era Margarida!
-Que tem, senhor padre? est� incomodado?-perguntou-lhe o sacrist�o.
-N�o h� de ser nada... passei mal a noite, e... n�o estou ainda acostumado a estas coisas... ia tendo uma vertigem.
O padre limpou o suor gelado, que Ihe inundava a fronte, e desempenhou atabalhoadamente, sem saber o que fazia, a sua cruel e f�nebre tarefa.
Chegando ao consist�rio, depois de ter dito ao sacrist�o, que os batizados e casamentos se faziam depois da missa, debru�ou-se sobre a cred�ncia e escondendo o rosto entre as m�os ali ficou im�vel por largo tempo orando, chorando, delirando.
[...]
A missa do padre novo, que gozava de uma grande nomeada de sabedoria e santidade, tinha atra�do � igreja um numeroso e brimante concurso. O pai e a m�e de Eug�nio estavam no auge do contentamento.
Chegando � escada que sobe para o altar-mor o padre parou e, quando j� todos de joelhos esperavam que rezasse o 'intr�ito', viram-no com assombro arrancar do corpo um por um todos os paramentos sacerdotais, arroj�-los com f�ria aos p�s do altar, e com os olhos desvairados, os cabelos hirtos, os passes cambaleantes, atravessar a multid�o pasmada, e sair correndo pela porta principal! Estava louco... louco furioso. (102)
A loucura, nesse caso, n�o vem de dentro, ou seja, Eug�nio n�o apresenta desvios psicol�gicos que justifiquem a perda de sua raz�o. Os motivos pelos quais ele se encontra destitu�do de controle pautam-se na influ�ncia do meio social. Em O seminarista, a loucura, decerto, � um dos est�gios al�m de uma s�rie de submiss�es autorit�rias que Eug�nio teve de suportar de forma controlada. Isso significa que seus impulses foram reprimidos, e seu estado de loucura e de f�ria consiste no desac�mulo ou no resultado �ltimo da viol�ncia abstra�da. N�o s� isso: o enlouquecimento do protagoniste perante o altar constitui-se numa dram�tica manifesta��o p�blica de sua resposta a uma situa��o a que ele, enquanto homem, tem sido cruelmente sujeitado. A loucura que o ent�o padre experimenta erige-se enquanto reflexo da autorit�ria estrutura patriarcal a que todos s�o inseridos. Assim, o estado final em que o rapaz se encontra equipara-se a uma fuga dr�stica de uma realidade social intoler�vel.
Levando-se em considera��o as premissas ideol�gicas coloniais e patriarcais, pode-se afirmar que h�, nesse livro, duas mortes: uma real, representada por Margarida; e outra simb�lica, representada por Eug�nio. Esse �ltimo enlouquece, e o indiv�duo louco � algu�m automaticamente exclu�do do sistema social. A morte � uma conseq��ncia das conjunturas sociais, mas �, acima de tudo, uma fator necess�rio para que a ordem dominante n�o seja destru�da. A exclus�o, seja ela por interm�dio da morte real ou simb�lica, brota naturalmente, dada a internaliza��o das ideologias coloniais e patriarcais por parte dos sujeitos sociais. Em outros termes: toda vez que a ordem social, tal quai � concebida, for amea�ada, o sistema d� conta de omitir aqueles elementos transgressores.
Assim, O seminarista resguarda particularidades que permitem avali�-lo enquanto uma representa��o do colonialismo. A rela��o de subordina��o do mais fraco ao mais forte, a exclusividade sexista, a rigidez como as regras sociais s�o conduzidas e o sofrimento das pessoas s�o alguns resultados que podem ser depreendidos na an�lise desse projeto autorit�rio de domina��o. Assim, procurou-se demonstrar que a fam�lia Antunes preenche certes requisites que se filiam ao colonizador; ao passe que D. Umbelina e Margarida encerram a condi��o de colonizadas. A primeira det�m posses e riquezas; as outras duas s�o miser�veis e subalternas, sem condi��es de reagir contra um sistema imposto. Na primeira, prevalece a voz do elemento masculine, s�mbolo da for�a e da domina��o, caracteristicas essas pr�prias da metr�pole; no segundo caso, impera a voz feminina, t�mida e acuada pela supremacia masculina, ou seja, pela ideologia hegem�nica. Assim como ocorre na rela��o entre essas duas fam�lias, a superioridade do colonizador em rela��o ao colonizado se funda a partir do acordo e da aceita��o de premissas ideol�gicas. A ideologia crist� contribui para a manuten��o de certas regras sociais e esse foi o meio para conduzir a domina��o. No que tange � coloniza��o do Brasil, a metr�pole buscou difundir o pensamento crist�o como uma das estrat�gias de controle social. Aqueles sujeitos que resistiam a tais premissas religiosas ou que n�o aceitassem o projeto de coloniza��o eram exclu�dos do sistema. No particular ao livro em aprecia��o, Eug�nio sofre e enlouquece ao ir na contram�o da proposta ideol�gica disseminada pelo grupo dominante. N�o s� ele: Margarida e D. Umbelina morrem devido � press�o imposta pelo poder autorit�rio. Em ambos os casos, a sociedade tem uma forte participa��o na constru��o da identidade masculina e feminina.
Portante, o livro de Bernardo Guimar�es deixa subjacente, pelo menos em �mbito tem�tico, algumas express�es do colonialismo. Com isso, busca-se dessacralizar a rigidez com que a ordem social � concebida, justamente para pensar num projeto de inclus�o. Essas observa��es s�o pertinentes porque determinadas express�es da ideologia colonial ainda perpetuam na atualidade. Exemple disso � o preconceito que as pessoas emitem contra certes grupos sociais. As mulheres, os negros e os sujeitos de desejos homoer�ticos, s� para citar alguns, t�m seu valor minimizado ou n�o apresentam valores para os interesses do sistema patriarcal, por isso, s�o excluidos. Essa viol�ncia reflete-se hoje, muitas vezes de forma mascarada, fazendo com que esses individuos sintam-se como Eug�nio: "com f�ria", "com os olhos desvairados", "cabelos hirtos", "passos cambaleantes", ou seja, descentrados em meio a uma "multid�o".
1 Bernardo Joaquim da Suva Guimar�es nasceu em Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, Brasil, em 1825. Na mesma cidade, realiza o curso secund�rio, findo ? quai, translada-se para S�o Paulo e matricula-se na Faculdade de Direito. Convive com outros dois escritores da �poca, �lvares de Azevedo (1831-1852) e Aureliano Lessa (1828-1861) (o primeiro, considerado o melhor representante da segunda fase do romantismo brasileiro, tamb�m conhecida como fase ultra-rom�ntica; o segundo, um escritor menor nas letras brasileiras, amigo de �lvares de Azevedo de quem retoma algumas efus�es sentimentais), com os quais participa da Sociedade Epicur�ia, que pretendia reeditar, em S�o Paulo, a bo�mia byroniana. Bernardo Guimar�es cultivou tanto a poesia quanto a fic��o. Dentre as suas obras, as mais conhecidas s�o O seminarista (1872) e A escrava Isaura (1875).
2 Edward Said (1995), a prop�sito, exemplifica a id�ia de superioridade da civiliza��o ocidental sobre as demais fazendo refer�ncia a um defensor franc�s do colonialismo, Jules Harmand, que, em 1910, dizia: "� necess�rio, pois, aceitar como princ�pio e ponto de partida o fato de que existe uma hierarquia de ra�as e civiliza��es, e que n�s pertencemos � ra�a e civiliza��o superior, reconhecendo ainda que a superioridade confere direitos, mas, em contrapartida, imp�e obriga��es estritas. A legitima��o b�sica da conquista de povos nativos e a convic��o de nossa superioridade, n�o apenas a nossa superioridade mec�nica, econ�mica e militar, mas nossa superioridade moral. Nossa dignidade se baseia nessa qualidade, e ela funda nosso direito de dirigir o resto da humanidade. O poder material � apenas um meio para esse fim" (48).
3 � interessante observar, a prop�sito, que Homi Bhabha (2003) tamb�m confere ao discurso colonial a caracter�stica de ser ambivalente e paradoxal. O autor argumenta que um aspecto importante de tal discurso � a sua depend�ncia do conceito de "fixidez" na constru��o ideol�gica da alteridade. A fixidez, enquanto signo da diferen�a cultural/hist�rica/racial no discurso do colonialismo, consiste num modo de representa��o paradoxal, pois conota rigidez e ordem imut�vel bem como desordem, degenera��o e repeti��o demon�aca (105). Em O seminarista, o discurso do padre aparentemente resguarda uma tentativa de ordem; no entanto, � ca�tico e subversivo.
[Reference]
Obras citadas
Althusser, Louis. Aparelhos ideol�gicos de Estado. Trad. Walter Jos� Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2. ed. Rio de Janeiro: Edi��es Graal, 1985.
Andrade, M�rio de. Macunaima: o her�i sem nenhum car�ter. BeIo Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1993.
Assis, Machado de. Dont Casmurro. Porto Alegre: L&PM, 1997.
Bhabha, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam �vila et al. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Bosi, Alfredo. Hist�ria concisa da literatura brasileira. 36. ed. S�o Paulo: Cultrix, 1994.
Caminha, Pero Vaz de. A carta. Biblioteca do Ex�rcito: Rio de Janeiro, 1957.
Guimar�es, Bernardo. O seminarista. 21. ed. S�o Paulo: �tica, 1995.
Lacan, Jacques. Ecrits I. Paris: Seuil, 1966.
Queiroz, E�a de. O crime do padre Amaro. 9. ed. S�o Paulo: �tica, 1995.
Said, Edward. Cultura e imperialismo. S�o Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[Author Affiliation]
Lizandro Carlos Calegari
Universidad Federal de Santa Maria
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